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Pela soberania do vazio

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Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.

Carlos Henrique Magalhães

Italo Calvino em sua obra As Cidades Invisíveis nos descreve lugares cuja presença no tempo se manifesta ao coletivo no momento de sua percepção. Nos relatos de Marco Polo a Kublai Khan, as sensações e experiências tomam a espessura do ocorrido e do pronunciado no quanto que possuem de recordações e futuro. As cidades imaginadas por Calvino não podem ser localizadas no espaço, o período de sua existência é tanto infinito quanto nenhum; suas virtudes, seus números e distâncias, as torres que possuem altas no céu ou os nomes que guardam fundo no chão.

Em certa altura das narrativas, Khan questiona Marco Polo se ele esteve de fato em todas aquelas cidades, pois, tinha impressão de que o viajante nunca havia deixado o jardim de seu palácio. Segue entre eles uma conversa de incertezas, existiria o mundo visto ali, apenas à sombra de seus olhos cerrados, e, assim, poderiam se refugiar nesse íntimo, distantes do alvoroço do mundo.  A passagem se encerra de maneira aberta, Marco pólo nos diz: “Talvez do mundo só reste um terreno baldio coberto de imundícies e o jardim suspenso do paço imperial do Grande Khan. São as nossas pálpebras que os separam, mas não se sabe qual está dentro e qual está fora.[1]

Talvez pudéssemos começar assim a descrição de uma cidade construída há quase cinqüenta anos no Planalto Central do Brasil: da tensão entre um mundo de dentro e outro de fora, de uma cidade escrita e reescrita sob diversas penas, de nanquim e de pesar. Na cidade que é marco indelével de uma época, luta-se por muito, pelo grande e pelo detalhe, pela fisionomia e pelo princípio, pelo patrimônio e por um crescimento, no mais das vezes, afeito a subversões e pragmatismos de toda ordem. Nesse conjunto de antagonismos e contradições que alguns aspectos da existência da capital despertam, apontamos em diversas direções, dentre eles, a permanência de seus espaços simbólicos.

Brasília alcança hoje quase meio século ainda em meio a polêmicas e discussões, cuja temperatura não decresceu desde os primeiros anos de sua fundação, quando então foi posta a enfrentar o ferrenho debate se sua viabilidade e realização[2]. A cidade se afirmou na memória dos brasileiros, é expressão de um país que imaginamos novo, distante dos arcaísmos de séculos recentes. Brasília responde como objeto da cultura e, dentro dessa perspectiva, sua arquitetura moderna representa tanto um momento de afirmação de identidades e nacionalismos contundentes, quanto permanece viva e dinâmica, sendo adaptada aos muitos acontecimentos que lhe sucedem.

A representatividade de suas escalas – monumental, gregária, residencial e bucólica – é contribuição expressiva ao panorama do urbanismo moderno no mundo[3] e a conjugação entre as mesmas, fundamental às diversas demandas às quais é reiteradamente chamada: da expressão simbólica do país, ao agradável acolhimento de seus moradores. Esta a inteligência de seu desenho, que alcançou perenidade pela enorme capacidade de Lucio Costa, Oscar Niemeyer e outros tantos realizadores empenhados em manter os princípios contidos no relatório do Plano Piloto. A proeminência de Niemeyer frente esse grupo é notória e justificável, sua obra pode ser encontrada em todas as escalas citadas anteriormente, dos edifícios de superquadra, aos palácios e monumentos nacionais. O inventário das obras de Niemeyer na capital federal possui extensão também no tempo, mais de cinqüenta anos separam o primeiro projeto dos mais recentes. O Eixo Monumental e a Esplanada dos Ministérios abrigam edifícios públicos projetados por nosso maior arquiteto, de naturezas e características diversas, de expressões cujo resultado formal apresenta determinadas nuanças.


Congresso Nacional - 1958

A Esplanada Ministerial de Brasília pode ser caracterizada objetivamente como a porção representativa do plano Piloto, que se estende a leste do cruzamento entre os eixos Monumental e Rodoviário – onde se situa a Estação Rodoviária da cidade – até a Praça dos Três Poderes, onde o Palácio do Congresso Nacional (1958) seria o elemento de apreensão e importância fundamentais, marcando simbolicamente nossa percepção, criando uma referência visual expressiva e categórica. É um espaço monumental. É um lugar onde o vazio determina e transforma as percepções. É momento raro de coincidência de duas sensibilidades, de duas personalidades artísticas diferentes, porém, alinhadas. Pois será exatamente no momento em que essa conjugação deixa de existir que iremos encontrar uma possível chave para percorrer o itinerário das transformações ocorridas no espaço simbólico e monumental de Brasília.

Gran Circo Lar (Foto APDF)

Gran Circo Lar. Foto APDF

A repetição cadenciada de edifícios rigorosamente iguais, os Ministérios (1958), é elemento de composição que, em equilíbrio com os demais edifícios públicos, conferem integridade física ao projeto, atribuindo-lhe propriedade decisiva de monumentalidade. Nas duas porções mais próximas à Rodoviária, Lucio Costa imaginou um conjunto cultural que durante muitos anos teve como único representante o Teatro Nacional (1958), edifício de grande robustez e austeridade, um tronco de pirâmide com tratamento diferenciado para cada empena. Enquanto isso, o lado sul deste mesmo conjunto permanecia vazio, ou ao menos sem uma edificação definitiva. A exceção era dada pelo Gran Circo Lar, tenda projetada pelo arquiteto Fernando Andrade, que gerencia a representação de Niemeyer em Brasília ao lado de Carlos Magalhães, edificação que até 1999 recebeu diversas manifestações artísticas e culturais.

O Complexo Cultural da República idealizado por Lucio Costa começou a receber propostas de edifícios da parte de Niemeyer na década de 1970. Para o lado norte projetou o Museu da Terra, do Mar e do Cosmo e anos seguintes, em 1986, projetou o Museu de Brasília e o Ministério da Cultura para o lado sul da cidade. Os esforços de realização para preencher os vazios que ladeiam a Esplanada dos Ministérios seguiram durante anos. Na década de 1990 a proposta sofre intervenções programáticas, Niemeyer então desenvolveu novo projeto assim distribuído: no lado sul, biblioteca, museu, auditório e restaurante; no lado norte sede Ministerial, Edifício Sede para o Arquivo Nacional e restaurante. [4]

Museu da República (1999)

Museu da República (1999) . Foto: Carlos H. Magalhães

Em 1999 é somada ao Complexo Cultural uma galeria subterrânea para estacionamento e uma nova proposta de nosso arquiteto. De uma conjugação imaginosa entre forma e programa resulta, para o lado norte, a proposta de um centro musical, espaço para cinemas e uma esfera para abrigar projeções 180°e Planetário. Em 2004 o projeto para o lado sul, que passou a receber o nome de Complexo Cultural da República João Herculino, ganha contornos definitivos com a Biblioteca Nacional Leonel de Moura Brizola, o Museu Nacional Honestino Guimarães e um pequeno restaurante, que dividem uma ampla praça, pontuada por espelhos d’água.

Após sucessivas transformações, foi adotado para o projeto do Museu um grande domo cuja base possui em torno de 90 metros de diâmetro e o ponto mais alto se situa a 28 metros do solo. A rés-do-chão se acessam o foyer dividido entre dois auditórios (700 e 80 lugares), acima destes a exposição dividida em dois níveis conectados por rampas, desde o nível da rua, chagando-se ao primeiro e em seguida em direção ao mezanino preso ao enorme domo por meio de tirantes. O edifício da Biblioteca é caracterizado por uma barra horizontal sobre pilotis, esta dividida em uma porção inferior de arcadas em concreto e outra vedada com retícula metálica.

É certo que encontramos esta conjugação de elementos plásticos em outras obras do arquiteto, mas o caso deste complexo parece ser o da resolução do ambiente urbano, da difícil relação entre a Esplanada – monumental e cerimoniosa – e o entorno de grande agitação cotidiana. Se ao longo da seqüência dos blocos ministeriais, tanto quanto no Palácio do Itamaraty (1962) os anexos encerram a perspectiva, favorecendo a leitura integral das partes, entre administração e representatividade, o mesmo não ocorre nos vazios do Setor Cultural. Nesse sentido, a proposta do arquiteto parece ser a afirmação da autonomia física do conjunto ao mesmo tempo em que dinamiza e transforma a percepção de seu entorno imediato. Com a praça, o conjunto de percepções desse lugar se altera substancialmente, é um espaço preciso de afirmação. O conjunto pode ser compreendido como um acontecimento plástico cuja finalidade de conexão é tão importante quanto de permanência, oferece à cidade um vazio preenchido em possibilidades de trânsito, ocupação e percepções. A grande praça é sim seca e árida, mas pensada em substituição a terra vazia, tornou-se um pano de fundo propício a diversas manifestações, tanto quanto ordenou o enquadramento que se tem dos setores que lhe são contíguos.

Os senões desse empreendimento são muitos e se desenvolvem em diversos níveis: das questões relativas à sua construção; da viabilidade do edifício da Biblioteca, sua efetiva ocupação e uso; o conforto sensorial do usuário que se põe a caminhar no imenso vazio em concreto etc. Soma-se a esse conjunto de argumentações plásticas e programáticas o fato do edifício não possuir estacionamentos para as atividades que abriga. Prontamente, poder-se-ia responder que o trecho não está totalmente executado, não só pela ausência das edificações no lado norte, mas pela galeria e estacionamento subterrâneo que conectaria os dois trechos da proposta. No projeto apresentado em 2004, esta situava-se sem ruídos no gramado da esplanada, apenas um belo desenho sinuoso no chão marcava sua presença.


Panteão da Pátria - 1986

Panteão da Pátria (1985). Foto: Carlos H. Magalhães

Em 1969 um grande mastro para a bandeira nacional é implantado na adjacência da Praça dos Três Poderes. O símbolo pátrio projetado por Sérgio Bernardes (1919-2002) até hoje não foi bem assimilado por seus pares: é associado ao governo militar deflagrado em 1964, é também agravo ao princípio da concepção do Plano Piloto, do Congresso como último marco visível do Eixo Monumental para além do qual se estenderia apenas o horizonte do cerrado. A campina circunvizinha, como descrevera Lucio Costa, recebe em 1985 um marco pela memória da redemocratização o Panteão da Pátria (1985-86) projetado por Oscar Niemeyer. Sua forma escultórica não chega a ser um macro elemento no ambiente urbano, mas muda de maneira contundente a percepção que se tem do entorno, quando se mira desde o terrapleno.

Esta intervenção dá as coordenadas de outros muitos edifícios propostos por Oscar Niemeyer, tais como o Supremo Tribunal Federal – Anexo II (1990) a Sede da Procuradoria Geral da República (2002), que levantaram severos apontamentos críticos, seja por sua presença na paisagem, seja pelo vultuoso investimento que recebem da máquina pública brasileira. A par destas edificações, outras desenhadas pelo arquiteto de seu escritório em Copacabana recebem atenção de público e crítica, por motivos nem sempre coincidentes. Caso do já referido Complexo Cultural da República.

Praça da Soberania - 2009

Praça da Soberania (2009). Imagem - Divulgação

Entre 2004 e 2007 duas propostas distintas de intervenção foram lançadas pelo arquiteto, não só fazendo a conexão entre os setores culturais do lado norte e sul, como passado a constituir manifestação física no canteiro central da Esplanada. Primeiro um monumento figurativo no formato de uma pomba branca, em seguida a notícia recente de cobrir as vagas de garagem de maneira assertiva, criando um gigantesco elemento urbano próximo à Rodoviária do Plano Piloto. A Praça da Soberania (2007-2009), segundo seu autor, deve causar espanto. O grande monumento destina-se a demonstrar o progresso do país, despertando a perplexidade em quem o vê. Além das referências feitas pelo arquiteto, o grande monumento acumula as funções de Memorial dos Presidentes e, a pedido do governo local, deveria simbolizar o cinqüentenário de Brasília, que será comemorado em 2010.

Ao se referir ao Conjunto Cultural da República a arquiteta e professora Gabriela Izar expõe com grande propriedade argumentativa, conotações para os edifícios daquela Praça: “Niemeyer é o arquiteto autofágico, o que devora sua própria obra, o que devora sua própria história (…)[5], por sombrear a própria história, ofuscar e deturpar princípios de uma monumentalidade inédita, “no sentido da expressão palpável, por assim dizer, consciente, daquilo que vale e significa.[6]

O grande monumento é ofensivo. Deturpa a obra de Lucio Costa e do próprio Niemeyer. Sobrepõe-se a outros significados relativos à manifestação da memória coletiva por meio de sucessivas aproximações a perspectivas e trajetos. É um marco impróprio aos princípios operativos da cidade por tentar forçosamente funcionalizar um lugar onde a apropriação não é necessariamente instrumental. Os vazios urbanos de Brasília representam contribuição decisiva da apreensão que se tem da cidade, da maneira como edifício e paisagem se relacionam.

As incongruências que aqui podemos apontar se referem principalmente à presença do Palácio do Congresso nas visuais da cidade. O edifício que Niemeyer se esforça em resolver por meio de um hábil manejo de volumes é uma obra que guarda qualidades específicas quando vistas de perto e à distância. Segundo Yves Bruand “o papel atribuído ao edifício no contexto urbanístico exigia que conservasse, a grande distância, toda sua força plástica: surgia como um dos pontos fundamentais de referência da cidade, visível de todas as partes por causa da situação privilegiada no fim da perspectiva formada pelo eixo monumental.[7]

Com este engenhoso jogo de equilíbrios e com uma sábia implantação do edifício, Niemeyer estabelece diálogo respeitoso com Lucio Costa, conciliando as expectativas presentes no traçado do Plano onde o urbanista concilia com grande percepção, aspectos dos lugares e a geometria dos espaços.

A desproporção do empreendimento e da escala deste edifício traz à tona esta e outras questões, tanto arquitetônicas quanto políticas e sociais. Sua possível materialização representa o caminho discricionário que tomou a obra de nosso maior arquiteto, o autoritarismo[8] com o qual são tomadas decisões de grande alcance em diversos campos da cultura nacional e fragilidade da arquitetura, frente a questões imperativas do capital, de um mundo determinado por ações pragmáticas, localizadas com estreiteza no intervalo dos tempos humanos.

O mundo desenhado por Niemeyer no Brasil moderno era o da superação, dos ineditismos plásticos estruturais e do arrojo, formas que iriam postular positivamente a identidade nacional em favor de um futuro próprio. O mundo no qual se insere a Praça da Soberania parece todo feito de sobras e avessos, não dialoga com a matéria do país, desobedece a suas urgências desafiando memórias, coletivas e particulares. Nesse contexto, não cabe fecharmos os olhos e deitar nossas penas inertes em folhas vazias. Procuremos debater amplamente este projeto, com sensibilidade de propriedade argumentativa, pois sua construção é problema nosso, de todos nós, cidadãos. Na confusão do mundo, que nossa perplexidade sirva para trazê-lo ao domínio do coletivo e das ações objetivas, esteja o lugar de onde avistamos esses horizontes, dentro ou fora de nossas idéias.


notas

[1] CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 96

[2] Brasília ainda hoje enfrenta questões dessa ordem, sendo constantemente criticada de maneira pouco circunspecta em inúmeros aspectos. Ver: MACEDO, Danilo Matoso. Alguma deselegância e muita cegueira. In: Portal Vitruvius – Minha Cidade vol. 5, 2003. disponível em: http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc082/mc082.asp. Acesso em janeiro de 2009.

[3] GOROVITZ, Matheus. Brasília, uma questão de escala.

[4] Para o histórico detalhado dos projetos: MARQUEZ, Mara Souto. A escala monumental do Plano Piloto de Brasília. Dissertação de mestrado. Brasília: UnB, 2007.

[5] SANTOS, Gabriela Izar. Brasília, a Capital, e Oscar Niemeyer, o Autofágico. In: Portal Vitruvius – Minha Cidade n° 129, 2005. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc129/mc129.asp. Acesso em janeiro de 2009.

[6] COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivencia. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.p.283

[7] BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981.p.200

[8] Poder-se-ia argumentar que Brasília é, em si, um gesto autoritário. Mas cabe lembrar que foi concebida, pensada e construída por um conjunto de pensamento, por um momento do país de grande conciliação entre campos do conhecimento. Viu-se aqui a existência de um projeto, no amplo sentido da palavra, que abarcava o debate de áreas afins em favor da cidade. Surge assim, por exemplo, um sistema de ensino fruto de um ideário, pautado pelo avanço não só pedagógico e institucional, como também físico e espacial, tanto na escala do edifício quanto na escala da cidade. Soma-se a isso o fato de que a Brasília que se constrói nas duas primeiras décadas, não foi feita apenas a quatro mãos. Nunca é demais recordar a importância que tiveram vários criadores empenhados em tornar possível esta cidade.

Carlos Henrique Magalhães
Arquiteto e Urbanista (UnB, 2006), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UnB,2009).

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grao.ds@gmail.com

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Publicado em Carlos Henrique Magalhães, Opinião

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